A estreia de ‘Velozes e Furiosos X’, o começo (e que começo: ainda faltam mais dois capítulos) do fim da saga protagonizada por Vin Diesel, é um evento e tanto para os devotos dos mais estúpidos e autoconscientes cinema de ação. Absolutamente tudo o que esperamos da franquia está aqui.e como sempre, sem nenhum senso de medida.
Ou seja, gigantescas bombas esféricas pegando fogo, uso de objetos gigantescos como armas de arremesso, vilões acima do topo (Jason Momoa parece ter sido inspirado por um desenho animado de Warner para compor seu banqueiro-dândi-sociopata), pessoas que pareciam mortas e que se revelam vivas, parentes de segundo grau ou menos que saem de debaixo das pedras, longuíssimas dissertações sobre a família como conceito, como instituição e como entidade microeconômica autossuficiente… ‘Velozes e Furiosos X’ é, inferno, uma parcela de ‘Velozes e Furiosos’.
Desde que a franquia deu uma guinada literal rumo à loucura em que ainda hoje consegue se defender como a melhor parcela da série, ‘Velozes e Furiosos 5’, a série fez bandeira de suas constantes e se recusou a se mover muito de as coordenadas que foram levantadas lá. A evolução é conhecida por todos: de filmes de corrida ilegais e lag afinação se transformou em uma louca saga de assalto, para terminar uma saga de pseudo-espionagem e missões secretas para salvar o mundo, completamente autocontido em um mundo invisível de agências em guerra e espiões sem vínculos com nada exceto a família.
O que há de único na série é que, apesar de se mover em códigos muito estabelecidos e quase rígidos, ela possui uma estranha naturalidade, uma honestidade muito peculiar que a diferencia de outras franquias de sucesso. É claro que ‘Velozes e Furiosos’ está longe de ser cinema de autor: são blockbusters puros e duros, planejados até o último milímetro, mas que guardam uma certa vida orgânica dentro de si. E isso porque, apesar de seu tamanho gigantesco, apesar de sua agradável previsibilidade, há um estranho coração dentro dele.
Vin Diesel, aquele ser humano
Quando os filmes da Marvel, Star Wars ou DC funcionam, eles funcionam muito bem. Mas quando eles falham, há uma certa desumanidade nos bastidores: os piores momentos de serviço de fãs implacáveis, de argumentos que só servem para prolongar a continuidade, de personagens que sobraram, nascidos de encontros em gabinetes. Franquias de sucesso vacilam quando o espectador percebe que atrás deles há muitas pessoas com laços reunidos e comparando algoritmos para que saiam filmes matematicamente atraentes. E às vezes eles fazem. Mas muitas vezes não.
Os filmes ‘Velozes e Furiosos’, e aí reside parte de sua beleza excêntrica, encontraram sua identidade para si: testando fórmulas a cada capítulo, errando e tentando de novo, dando mais do que gostam e deixando o que gostam pelo caminho isso nem tanto Foi assim que se construiu esta espécie de mazacotes desarmantemente sinceros, aqueles godzillas de barulho e chumbo que só se devem a um público fiel que sabe exatamente o que esperar de cada capítulo.
Isso não os torna filmes de autoria tradicional, insisto: são blockbusters. Mas…não há nada de especial em evitar as correntes do mercado, as necessidades do streaming, as rotas comerciais altamente planejadas de seus concorrentes que o ‘Velozes e Furiosos’ esquiva como quem usa helicópteros com boleadoras? Não há algo cativante em “já sabemos que continuar a usar Jason Statham neste ponto não faz sentido na trama, mas … vamos negar isso aos fãs”?
É por isso que o truque “ele era o vilão, mas agora ajuda os heróis” pode funcionar, à sua maneira, na primeira vez. Mas um segundo, um terceiro, um quarto, e assim por diante indefinidamente, até que a família de Toretto se torna uma espécie de Esquadrão Suicida sobre rodas de sociopatas redimidos, superando as bobagens roteirizadas para se tornar uma lei interna que só faz sentido em ‘Velozes e Furiosos’. Marvel e ‘Star Wars’ tentam criar heróis que são empáticos além de seus universos ficcionais: ‘Velozes e Furiosos’ força o espectador a se tornar parte do universo da loucura, sem pedir permissão.
‘Velozes e Furiosos X’ é mais disso, no estilo usual, com alguns elementos refinados (por exemplo, o vilão é mais extremo para impedir justamente essa mudança de lado -a redenção que ele interpreta nesta parcela é especialmente louca-) e outros que preservam/engrandecem o estilo habitual (o setpiece em Roma está entre os melhores e mais loucos que a saga já produziu). Uma série que permanece extraordinariamente fiel a si mesma e a seus fãs, de forma estranha e consistente. Uma raridade na Hollywood de hoje.